Pregação e Aconselhamento: Uma Aproximação Multiperspectiva

Resumo

Este artigo apresenta e defende um modelo de pregação que vai além de perspectivas particulares, tais como a diferenciação entre os propósitos do sermão e do aconselhamento bíblico, tipos de sermão, dualismo teologia e prática, uso de fontes seculares para reforçar o poder da Escritura, etc. Orienta, também para um trabalho hermenêutico da Palavra de Deus e da pessoa à luz dessa mesma Palavra, por meio do uso de perspectivas bíblicas, a fim de produzir uma pregação instrutiva, persuasiva e transformadora, com base na obra completa de Cristo. O elemento distintivo do artigo é a visão multiperspectiva tanto dos aspectos da pregação e dos conceitos do aconselhamento quanto uma visão integradora da ação de pregar e de aconselhar segundo a fé em Deus, a esperança em Cristo e o amor derramado pelo Espírito Santo.

Introdução

À primeira vista, os termos “pregação” e “aconselhamento” parecem descritivos de diferentes matérias. De um lado, a pregação é vista por diferentes pessoas de diferentes perspectivas, ora como uma caminhada diária obrigatória na via expositiva, ora como viagem de turismo tópico através da Bíblia, ora como trabalho árduo na sequidão do terreno textual. Por outro lado, o aconselhamento é visto como uma aventura pelo país vizinho, da psicologia. Escrevi em Aconselhamento Redentivo que o aconselhamento cristão não deveria ser considerado como uma especialidade separada do aspecto pastoral e da comunhão cristã na igreja. Para o pastor, as habilidades para o aconselhamento são partes tanto do preparo e da entrega de sermões quanto da prontidão para responder aos ouvintes após a mensagem. É preciso que o pastor seja hábil intérprete da Palavra e hábil intérprete de pessoas, se ele quiser ser efetivo no ministério. 1 Existiria algo como pregação para aconselhamento? Certamente tal declaração é uma redundância. A própria pregação é aconselhamento. Entretanto, dado que muitos pregadores têm perspectivas particulares a respeito da pregação, faz-se necessário explanar o conceito de pregação para aconselhamento no contexto do nosso estudo.

1.1 Homilética

Para ilustrar o que quero dizer por “perspectivas particulares”, veja a questão levantada acima sobre tipos de sermões. Para fins didáticos, é costume dividir os tipos de sermões em categorias: textuais, tópicos e expositivos. O problema é que professores e alunos passaram a considerar tais divisões didáticas como sendo categorias estanques e preferenciais. A esse respeito, levanto algumas questões. Um sermão poderá ser tópico sem considerar textos específicos? Poderá ser textual sem considerar tópicos relacionados? E poderá ser expositivo sem levar em conta o texto e os tópicos relacionados? Jay E. Adams, cujas especializações em aconselhamento e pregação autorizam o comentário, diz que é comum a informação de que haja três tipos de pregação: expositiva, tópica e textual. Entretanto, diz Adams, mais do que indicativas de ênfases, tais distinções são sem sentido e causadoras de males. A pregação deveria, antes, ser vista como multiperspectiva, isto é, como uma sinfonia das três perspectivas, enriquecendo a apresentação do sermão. Tais perspectivas não poderão ser separadas sem empobrecer o sermão.

Por exemplo, “pregadores expositivos” fracos acham que a exposição implica em meros comentários sobre uma passagem da Escritura durante um período de tempo, cobrindo um número de áreas com aplicações interpessoais, e concluindo quando o relógio avisa que terminou o tempo. “Pregadores tópicos” fracos to-1 GOMES, Wadislau Martins. Aconselhamento redentivo. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 8. mam um tópico ou tema à parte da Escritura (ou usando a Escritura como pano de fundo) e declamam trivialidades piedosas e verdades sem qualquer consideração quanto à exposição da Palavra. Agem como se toda a congregação fosse crer somente no que ele estaria dizendo. “Pregadores textuais” fracos tomam um verso ou dois, ou uma palavra, e discorrem sobre isso totalmente (ou quase totalmente) fora de contexto… A verdade é que em todo bom sermão todos esses aspectos estarão presentes. Terá sempre de haver um texto ou (como já tenho dito) “uma porção pregável”. Esta é a passagem (ou passagens) que forma a base dada por Deus para tudo o que é dito na pregação. O texto poderá ser curto ou longo… Terá de haver um tópico. Como alguém poderia pregar sem um assunto (ou tópico) sobre o qual pregar?… A ênfase tópica (doutrinária) talvez tenha de incluir outras passagens bíblicas… Mas o uso da passagem base e das demais passagens exigirá exposição (de cada passagem, com sua ênfase télica ou proposicional)… 2

1.2 Teologia

Igualmente, quando falamos sobre teologia, saímos com uma carta da manga e exclamamos conspicuamente: “Prefiro teologia bíblica à teologia sistemática”. A meu ver, a Bíblia é a base proposicional da tarefa do pregador, a teologia bíblica é seu método organizacional, e a teologia sistemática, seu plano funcional de abstração prática. O que é que eu quis dizer? Que a Bíblia é a fonte da água viva, a teologia bíblica o vasilhame em que são guardadas as porções de água, e a teologia sistemática, o ato de examinar a água para servi-la às diversas necessidades.

Richard A. Muller, escrevendo sobre a unidade do discurso teológico, especialmente sobre objetividade e subjetividade no seu estudo, argumenta que a divisão usual em teologia bíblica, histórica, sistemática e prática, é justificada. “Para afirmar o caso ainda mais teologicamente”, ele diz, o princípio bíblico da Reforma requer uma distinção inicial entre teologia bíblica e histórica, enquanto que os mandamentos bíblicos para crer e obedecer, criam a distinção entre as disciplinas do pensamento e ação, sistema e prática.

Contudo, se não considerarmos a unidade do discurso teológico, perderemos a relação conseqüente entre os aspectos do estudo, especialmente da prática final. Muller escreve:

O estudo da teologia, então, através de grande parte da tradição cristã, foi um estudo do material relevante para a vida da igreja e para a espiritualidade do 2 ADAMS, Jay E. What kinds of preaching are there? Journal of Bíblical Counseling, 1994, Vol. XII, No. 2, p. 24. O interesse de Adams nessa introdução é chamar a atenção para o artigo seguinte ao seu: “A lei escrita no coração”, sermão “para aconselhamento” de Charles Spurgeon, e para o guia de estudo de tal sermão, elaborado por David Powlison.

indivíduo. Mais do que isso, a meditação sobre o material da teologia era tão espiritual quanto uma disciplina acadêmica. A disciplina da teologia -de fato, a disciplina do estudo da teologia -deveria criar na mente dos estudantes uma série de padrões de idéias e interpretações que podem influenciar a mente e a vontade, pensamento e ação. 3 Os Guinness e John Seel, no preâmbulo exortativo feito aos evangélicos no livro No Gods But God, escrevem que a decadência da verdade é refletida por muitos autores, com “magníficas exceções”, os quais procuram reforçá-la com o auxílio de modelos seculares, desprezando a teologia.

Repelida, à guisa de “teologia de seminário”, como se fosse especializada, profissionalizada e seca, essa decadência permite que os evangélicos sejam atraídos por movimentos que substituem a teologia por ênfases relacionais, terapêuticas, carismáticas e empresariais (movimento de crescimento da igreja). Quaisquer que sejam as virtudes que contenham, nenhuma dessas ênfases dá à verdade e [ao seu estudo na teologia] o lugar que ela requer na vida e no pensamento do verdadeiro discípulo. 4

1.3 Pregação E Aconselhamento

Em diversos escritos, Calvino tece comentários sobre doutrina, pregação e aconselhamento, relacionando-os de maneira multiperspectiva:

… não basta ensinar, se você não insta… Pois a doutrina do evangelho é ajudada por exortações, para que não fique sem efeito… é responsabilidade do embaixador reforçar com argumentos… Eles [os pregadores] não apenas “oferecem”… a graça de Deus, mas se esforçam… para que ela não seja oferecida em vão. 5 Uma exortação não exclui a doutrina… este é o ofício do que ensina: não proferir palavras de seu próprio pensamento, mas da Escritura… 6 Mas sabemos que o uso do ensino é duplo; primeiro, que aqueles que sejam totalmente ignorantes aprendam os elementos primários, e segundo, que aqueles que são iniciados, progridam. 7

Havemos de reconhecer que a Palavra de Deus é definitiva sobre muitas coisas em termos do conhecimento de Deus e de sua vontade (visto que Deus é perfeito e imutável), mas também que ela é menos definitiva e mais descritiva com respeito às coisas dos homens (visto que somos imperfeitos e mutáveis). Deus usa palavras de homens para revelar a si mesmo e sobre si mesmo a fim 3 MULLER, Richard A. The study of theology. de que os homens usufruam o processo para o louvor da glória de sua graça. Palavras são fluidas, dinâmicas e elásticas; elas se justapõem, opõem-se e cobrem umas as outras numa sintopia (tópicos em sintonia).

Despendo tempo e espaço preciosos para explicar tais coisas porque reconheço que o assunto está tão incrustado na mente que é de difícil mudança de perspectiva. Contudo, temos a promessa do Senhor Jesus Cristo de que o Espírito Santo nos guiará a toda a verdade.

2.1 Os Objetivos Comuns À Pregação E Ao Aconselhamento

Agora, sim, estamos preparados para uma resposta à pergunta levantada nesta seção: Existe algo como pregação para aconselhamento? Não e sim. Não, no sentido de que a pregação bíblica não se presta, primariamente, para qualquer outra coisa senão o conhecimento de Deus segundo a palavra de Cristo no poder do Espírito (1 Co 1.21; Rm 10.17; 1 Co 2.4). Contudo toda mensagem deveria cumprir seu papel profético: “Mas o que profetiza fala aos homens, edificando, exortando e consolando” (1 Co 1.3). Então, a resposta também é sim, no sentido de que algumas mensagens, mais do que outras, objetivam a preparação para enfrentar problemas e para a redenção do caráter em face dos problemas:

Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra (2 Tm 3.16-17).

James Lansberry, membro da Redeemer Presbyterian Church (PCA) em Peoria, Illinois, vice-presidente operacional de Samaritan Ministries, escreveu um artigo sobre pregação desde a perspectiva do ouvinte, dando suas impressões sobre como muitas pregações são e como poderiam ser. Na conclusão do artigo, ele diz que Deus quer usar a pregação para mudar a vida das pessoas, o que é igualmente o alvo do aconselhamento:

Entretanto, negligenciando os três fatores: simplicidade, autoridade e praticidade, você estará retirando o âmago do poder transformador da palavra pregada. Nós [os ouvintes] somos ovelhas estultas; precisamos de sermões de estrutura simples. Somos rebeldes, pecadores de ouvidos surdos; precisamos de mensagens entregues com autoridade. Somos confusos, vagantes; precisamos de algo que mude a nossa vida de maneira prática. Oro, pedindo a Deus que nos dê isto: que a cada Dia do Senhor ele nos alimente com boa comida temperada com estes três ingredientes. 8 A pergunta “Como pregar para aconselhamento?” deveria ser substituída por “Como não pregar para aconselhamento?” É simples de entender! Se a tarefa do pregador é a do profeta, não haverá outra forma de pregar senão aconselhando.

Muitos de nós adquirimos o vício frustrante de procurar textos que ofereçam boa possibilidade para se fazer um sermão. Quinta-feira, geralmente, é o dia em que a procura começa. Tal como um compositor de escola de samba, o pastor se agonia em busca de um texto que “dê sermão”. Não deveria ser assim. Na verdade, o sermão flui do estudo bíblico pessoal, em humilde oração, processado no culto individual e no culto familiar, e experimentado no dia-a-dia na comunhão dos irmãos.

A dificuldade que muitos temos com o preparo e a entrega de sermões procede, em primeiro lugar, de deficiências de nossa comunhão pessoal com Deus e com sua Palavra. Em segundo lugar, das deficiências de nossa formação básica dos hábitos de leitura e de estruturação do pensamento. Uma boa compreensão sobre a integração de conceitos de instrução, comunhão, adoração e serviço auxiliará o pregador a aumentar sua habilidade de falar aos homens, edificando, exortando e consolando. O contacto do pregador com Deus e com a sua Palavra deveria prefigurar o contato do pregador e da sua palavra com os seus ouvintes.

Outra dificuldade advém da nossa formação quanto aos hábitos de leitura. Aprendemos a ler as palavras sem prestar muita atenção aos sentido delas. O tempo gasto para ler sílabas, palavras e frases geralmente distrai nossa atenção do sentido das palavras. Da mesma forma, aprendemos disciplinas escolares sem prestar atenção à sua integração prática.

Outro exemplo de dificuldade é a confusão levantada tanto pelos defensores quanto pelos oponentes da teologia sistemática. Por que existe tal confusão? Uma das razões é a que já tratamos acima, de que há pessoas que não atentam à integração circular crescente do estudo da Palavra (a Escritura é a proposição de Deus para a fé e a prática de vida; a teologia bíblica é a organização de tais proposições em categorias de pensamento bíblico; e a teologia sistemática é a fundamentação e categorização das mesmas proposições em termos de abstrações práticas).

Integração circular e crescente, digo, porque existe num ambiente espiritual-material cujo ponto de partida habita em Deus para conhecimento e cujo ponto de fuga retorna para Deus em obediência. A mesma integração deveria ser feita em relação à homilética: a revelação escrita de Deus é a hermenêutica da criação, da qual o pregador, em comunhão com Deus, deveria fazer a hermenêutica bíblica a fim de construir sua homilética. Difícil de entender? Deus fez uma hermenêutica daquilo que iria criar; depois da criação e da queda, produziu uma hermenêutica que possibilita o conhecimento das dinâmicas da Criação, da Queda e da Redenção. A tarefa do pregador é produzir a hermenêutica da Palavra a fim de “revelar” aos seus ouvintes o conhecimento de Deus, e as dinâmicas do conhecimento do homem e do mundo.

Muller diz que a contextualização deveria ser uma prática consciente do exercício da hermenêutica historicamente controlado.

A doutrina da expiação fornece uma excelente série de exemplos para discussão. O Novo Testamento fornece não uma, mas várias maneiras de descrever a obra expiatória de Cristo: é um resgate pago pelo pecado, uma reparação sacrificial pelo pecado, um ato substitutivo que coloca Jesus em nosso lugar sob a punição divina por causa do pecado; é a vitória de Cristo sobre o poder do mal; é a manifestação redentiva do amor de Deus; é o ato de o segundo homem ou segundo Adão se tornar cabeça da humanidade no lugar de Adão. Todas essas aproximações à expiação são achadas no Novo Testamento e podem ser ligadas exegeticamente à necessidade de situações particulares da vida para interpretação e pregação do evangelho. 9

John MacArthur, num sermão “para aconselhamento” baseado em Judas 24-25, pergunta qual seria, na visão do leitor, a verdade mais importante na esfera da salvação. Sem desprezar cada uma das doutrinas da salvação (conversão, adoção, reconciliação, remissão, redenção, etc.), ele elege a doutrina da perseverança com a mais importante. A seu ver, as demais doutrinas seriam diminuídas, se a salvação não fosse eterna.

Retire tal doutrina [perseverança dos salvos], e toda alegria consumada, confiança, segurança, descanso, conforto e esperança serão significantemente degradados e justificadamente substituídos por dúvidas, medos, ansiedades e preocupação… Qual seria a garantia?… A bênção de Judas 24-25 responde a questão. 10 A pregação para aconselhamento não é diferente de qualquer outra, senão que requer um trabalho hermenêutico da Palavra e da audiência para uma exposição calorosa e autêntica cujo objetivo é edificar, exortar e consolar. Ela se mostrará efetiva quando exibir a relação entre a unidade multiperspectiva da mensagem e a coerência do ato-estrutura (atividade interna e externa da palavra e da vida) do pregador com o objetivo de transformar o caráter dos ouvintes e de produzir mudança de comportamento. entre a evangelização e o aconselhamento. De uma maneira clara, ele apresenta uma ligação entre tal pregação e o próprio culto:

2.2 A Integração Da Pregação E Do Culto

Porém, se todos profetizarem, e entrar algum incrédulo ou indouto, é ele por todos convencido e por todos julgado; tornam-se-lhe manifestos os segredos do coração, e, assim, prostrando-se com a face em terra, adorará a Deus, testemunhando que Deus está, de fato, no meio de vós (1 Co 14.24-25).

A fim de entender a dinâmica da pregação de aconselhamento para edificação da igreja, será preciso ter uma visão geral do aconselhamento para evangelização. Tal é o caso da proposta de um evangelismo implosivo.

2.3 Evangelismo Implosivo

Suponha que você esteja voltando de um estudo bíblico sobre evangelização, sentindo-se desafiado a falar do evangelho para a primeira que pessoa que lhe dê oportunidade. Em um banco de praça perto de sua casa, um vizinho, professor de ciências da escola do bairro, cumprimenta-o e, gentil, convida-o a sentar. Ao lado, um raro pau-brasil domina a área; um cão pequinês fareja um rato no gramado úmido; o ambiente está pleno de claridade e calor amainado pela brisa.

Deixe-me fazer uma pergunta daquelas que a gente fica olhando com ar de quem não se localizou ainda: Qual seria o ponto de contacto entre você e seu vizinho que lhe permitirá uma conversa evangelizadora efetiva? A árvore, o cão, o sol, o vento? Como poderia ser, se para o seu vizinho toda a natureza é produto do acaso ao longo do tempo? Seria você mesmo? Como, ainda, poderia ser se, além disso o antagonismo anticristão (a despeito de toda a gentileza) domina o não-cristão? Seria ele mesmo? Como, também, poderia ser, se ele se encontra perdido? A única resposta seria: Deus mesmo é o ponto de contacto entre o crente e o incrédulo; e a ausência de Deus, o ponto de contacto entre o incrédulo e Deus.

De posse desse conceito, há mais uma questão: Como é possível falar de coisas espirituais a alguém que se encontra morto em delitos e pecados? Como disse o Senhor Jesus a Nicodemos: “Se, tratando de coisas terrenas, não me credes, como crereis, se vos falar das celestiais?” (Jo 3.12). Falar do evangelho a um incrédulo é como falar a um estrangeiro sem que os interlocutores falem a língua um do outro.

O pensamento pós-moderno (caracterizado pela ausência de absolutos e de obrigação moral e pelo conceito de que tudo no mundo é construção lingüística), agrava a situação. Seu vizinho poderá até concordar que você tem o direito de crer como crê, mas você terá de concordar que ele também tem tal direito. Sequer será politicamente correto tentar uma aproximação proselitista. O que fazer?

A proposta de um evangelismo implosivo segue o padrão da Grande Comissão:

Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século .

No meu livro Em Terras dos Brasis, 11 ilustrei o texto dizendo que indo, sob a autoridade de Cristo, apontamos para Jesus andando sobre as águas para que outros o sigam; empurramo-los para que, além de segui-lo, nadem com ele; e, finalmente, pulamos nas águas junto com eles para gozar da presença de Jesus. Essa ação envolve realismo com esperança.

Não apontamos para um ideal romântico nem falamos de subir aos céus, mas apontamos para o Deus conosco e falamos de Cristo em nós.

2.4 Quatro Tipos De Evangelismo

Thomas Sigley escreve sobre quatro tipos (pelo menos) de evangelismo (sistema baseado no evangelho) que podem ser usados por Deus para a obra da evangelização (ação de evangelizar). 12 Entretanto, aplicados isoladamente, tais tipos de evangelismo refletem apenas parte da verdade evangélica e, por isso mesmo, falham com respeito a atingir o objetivo de Deus.

O primeiro é o mais conhecido e dominou as grandes campanhas evangelísticas dos últimos séculos até recentemente. É a evangelização de massas. Hoje, a tentativa continua sendo feita, mas, devido à migração do grande público das salas de espetáculo para a TV, a evangelização de massas tomou jeito de audiência de sofá (o fenômeno das novas igrejas é outro).

O segundo tipo é o evangelismo intensivo, caracterizado por uma apresentação do método da salvação. Um grande homem de Deus, excelente evangelista, enviou uma carta a um amigo. O amigo recebeu a carta do amigo, o que sempre é mais que uma carta, como disse Paulo na carta a Filemom quando enviou Onésimo e, junto dele, o seu próprio coração: “Eu te escrevo, sabendo que farás mais do que estou pedindo” (1.21). Mais tarde, a carta foi transformada num folheto, cujo uso implicava em treinamento especial, memorização do texto, etc.

O terceiro tipo é o evangelismo religioso, muito usado nas igrejas tradicionais, especialmente no século passado. Lembra-se do “convidar para ir à igreja”? Tal modelo é baseado em modelação (testemunhos públicos, testemunho pessoal, “olhe como sou abençoado”, etc.), expectação (“Olhe só o que Deus pode fazer em sua vida”) e experiência espiritual-social (“Sinta-se bem no nosso meio”).

O quarto tipo é o já fora-de-moda evangelismo místico, “de sinais e maravilhas”. Certamente eu acredito que o Espírito comprova com poder a origem divina do evangelho e que Deus ainda age supranaturalmente hoje. Mas diante do fato de que a história mostra um processo de desvio em tal tipo de evangelização, é preciso agir de maneira criteriosa e crítica em relação à matéria. Antes, era a Palavra de Deus experimentada; depois veio a Palavra de Deus mais a experiência; depois disso, experiência mais Palavra de Deus; finalmente, está aí a experiência sem a Palavra de Deus. É um grande desvio.

Correta e juntamente aplicados, os quatro tipos poderão ser bons instrumentos de evangelização. A pregação de massas com apresentação de métodos e com exibição de modelos e de poder espiritual pode ser efetiva na proclamação do evangelho se tiver conteúdo bíblico suficiente. Isoladamente, porém, tais tipos de evangelismo apresentam uma mensagem impessoal, mecânica, religiosa e mística, muitas vezes psicologizada, 13 que foge das características da Grande Comissão. O grande problema é que tais tipos de evangelismo não atingem os ídolos do coração, os quais são tentativas de substitutivos para a soberania, a verdade e o amor de Deus. Precisamos ter em mente que a função da evangelização é pregar a bondade de Deus para arrependimento e fé a um mundo decaído cuja natureza é rebelde contra Deus, reversa em termos de pensar o contrário dos pensamentos de Deus e inversa no sentido de pensar primeiro em referência a si mesmo em vez de em Deus e depois no próximo como em si mesmo.

Enquanto os evangelistas não estiverem plenamente convencidos pelo Espírito de Deus e pela instrução da Palavra sobre a altura da santidade de Deus e a profundidade do pecado humano, não serão bons evangelizadores. E enquanto os seres humanos sem Deus não estiverem convencidos pelo Espírito Santo e pela pregação da Palavra sobre a profundidade do pecado, da justiça e do juízo, bem como sobre a altura da santidade e da bondade de Deus, não poderão ouvir, crer e arrepender-se para serem salvos.

2.5 Evangelização Implosiva

Por que implosiva? Estou pensando em uma comunicação efetiva que, para o bem da economia do pensamento, preencha três solicitações: (1) um evangelismo (sistema baseado no evangelho) que fale da obra completa de 13 Ver GOMES, Wadislau Martins. Psicologização do púlpito e relevância na pregação. Fides Reformata, Vol. X, N° 1 (2005), p. 11-29.

Cristo ao homem completo, de modo substancial; (2) uma evangelização (ação de evangelizar) aconselhadora que responda às questões das pessoas sobre a razão da esperança contra a desesperança de sofismas e idéias opostas a Deus; e (3) um evangelho (boas novas da salvação) que proponha transformação de caráter à semelhança de Cristo em termos individuais e corporativos.

Em Colossenses 1.15-28, o apóstolo Paulo fornece uma amostra do conteúdo evangelístico que tenho em mente. Dado o fato de que a fé contempla o invisível, a existência, o poder criador e a bondade de Deus (Hb 11.3, 6), Paulo começa localizando Jesus Cristo nesse contexto: ele é a imagem do Deus invisível, ponto referencial da criação, o qual se fez carne, habitou entre os homens, morreu, ressuscitou e ascendeu aos céus, de onde enviou seu Espírito para vir habitar em nós, individualmente e na igreja. E conclui:

Cristo em vós, a esperança da glória; o qual nós anunciamos, advertindo a todo homem e ensinando a todo homem em toda a sabedoria, a fim de que apresentemos todo homem perfeito em Cristo; para isso é que eu também me afadigo, esforçando-me o mais possível, segundo a sua eficácia que opera eficientemente em mim (Cl 1.27b-29).

A isso eu chamo de evangelismo implosivo. Com o que ele se parece? De todas as situações de evangelismo na Bíblia, a mais descritiva do processo em termos de natureza e estratégia é o caso de Filipe e o oficial etíope (At 8.26-40). O relato apresenta aspectos supranaturais e naturais da experiência do evangelismo implosivo (“uma anjo falou a Filipe: Dispõe-te e vai… Então, disse o Espírito a Filipe: Aproxima-te desse carro e acompanha-o”). O etíope, de volta de adorar a Deus em Jerusalém, vinha lendo as Escrituras no profeta Isaías. Indagado se entendia o texto, o oficial da rainha etíope respondeu: “Como poderei entender se ninguém me explicar?”. Para encurtar a história, Felipe discorreu sobre a passagem, apontando para o Cordeiro de Deus. Implodidas as idéias religiosas através das quais tentara entender as coisas, o etíope certamente teve sua vida transformada (o texto deixa transparecer isso na ação do Espírito) e, finalmente, quis ser batizado. A evangelização implosiva propõe uma base evangelística na igreja caracterizada pelo culto teo-referente racional e vivo. O culto público de adoração é o ponto maior do significado da vida e prepara a pessoa para o culto do dia-a-dia. A Palavra lida e pregada, a Santa Ceia e o Batismo são elementos poderosos, argumentos audíveis e visíveis para edificação da igreja e para evangelização dos não-cristãos. Especialmente quando são atos conscientes e sinceros, seguidos da prática necessária. Se alguém ouve a Palavra e não a pratica é com um homem natural; quem participa da Ceia da Senhor em pecado ou deixa de participar por causa do pecado não-confessado, é réu do corpo de do sangue de Cristo; e quem é batizado, mas rejeita a fé, rejeitou o corpo de Cristo. Contudo, quem guarda a Palavra, observa a comunhão com Deus e com os homens, e permanece na fé, este é vitorioso -e ouvido quando evangeliza o amigo, o conhecido e o estranho.

Assim, a proposta da evangelização implosiva é esta: (1) em vez de evangelismo extensivo, culto teocêntrico; (2) em vez de evangelismo intensivo, exibição da unidade da igreja em verdade e amor; (3) em vez de evangelismo religioso, pregação e prática da Palavra; e (4) em vez de evangelismo místico, fé no poder de Deus (e não no nosso próprio poder para convencer Deus e os homens). Tal tipo de evangelização implode o coração das pessoas como um dia implodiu o nosso com a convicção do nosso pecado sobreposta pela imensa graça de Deus.

Quando o indivíduo e a igreja vivem e pregam coerentemente, exibem ao mundo que Deus está no controle da verdade, presente em amor e com autoridade sobre todas as suas obras. Em Efésios 3.14-21, Paulo se põe de joelhos diante do Pai de quem toma o nome toda família, no céu e na terra, orando para que, segundo a riqueza da sua glória, vos conceda que sejais fortalecidos com poder, mediante o seu Espírito no homem interior; e, assim, habite Cristo no vosso coração, pela fé, estando vós arraigados e alicerçados em amor, a fim de poderdes compreender, com todos os santos, qual é a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade e conhecer o amor de Cristo, que excede todo entendimento, para que sejais tomados de toda a plenitude de Deus (v. 16-19).

Não importando as tendências da mídia nem as “necessidades” relevantes do povo, a igreja tem de continuar a pregar o que Deus quer e sabe que é o melhor para nós. Deus sabe o que são estratégias, lucros e perdas e propaganda efetiva. Quanto a nós, ainda que venhamos a sofrer por causa da justiça, seremos bem-aventurados. Não podemos nos amedrontar com as ameaças nem nos alarmar com o sucesso de quem não tem coerência de verbo e vida. Antes, santifiquemos a Cristo, como Senhor, em nosso coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós, fazendo-o, todavia, com mansidão e temor, com boa consciência, de modo que, naquilo em que falam contra vós outros, fiquem envergonhados os que difamam o vosso bom procedimento em Cristo, porque, se for da vontade de Deus, é melhor que sofrais por praticardes o que é bom do que praticando o mal (1 Pe 3.14-17).

Precisamos compreender -entender, abarcar e abraçar -a certeza de que Deus levará a cabo a sua proposta de proclamar o evangelho por meio de sua igreja, na unidade da fé (não na unidade da programação ou da paz entre os homens, mas inimiga de Deus, que é o pluralismo teológico). Quando a igreja vivencia a verdade em amor, a fidelidade à Palavra de Deus, e a sabedoria de Deus em pensamento e em comportamentos, o mundo vê, o mundo ouve:

… para que, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus se torne conhecida, agora, dos principados e potestades nos lugares celestiais, segundo o eterno propósito que estabeleceu em Cristo Jesus, nosso Senhor, pelo qual temos ousadia e acesso com confiança, mediante a fé nele (Ef 3.10-12).

Só Assim Cumpriremos A Tarefa Que O Senhor Delegou:

Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século (Mt 28.18-20).

O aspecto distintivo é que a evangelização implosiva é, ao mesmo tempo, proclamação das boas novas, aconselhamento e discipulado. É o poder de Deus para implodir corações, vencer rebeliões, trazer arrependimento às reversões dos pensamentos, e fé em Deus para abandono de ídolos e paixões -para o reino do Filho do seu amor.

3.1 O Objetivo Da Hermenêutica: Fé E Caráter

Ainda que a tentação aqui seja entrar pelos caminhos da hermenêutica, devo resistir e abordar apenas os aspectos mais significantes em relação ao tema. Primeiro, consideremos como a própria Escritura fornece o entendimento sobre pregação e aconselhamento e depois veremos como ela promove a transformação em Cristo, no Espírito.

Em 2 Pedro 1.3-4, o apóstolo descreve o uso da Palavra de Deus em relação à vida cristã:

Visto como, pelo seu divino poder, nos têm sido doadas todas as coisas que conduzem à vida e à piedade, pelo conhecimento completo daquele que nos chamou para a sua própria glória e virtude, pelas quais nos têm sido doadas as suas preciosas e mui grandes promessas, para que por elas vos torneis co-participantes da natureza divina, livrando-vos da corrupção das paixões que há no mundo, por isso mesmo, vós, reunindo toda a vossa diligência, associai com a vossa fé a virtude; com a virtude, o conhecimento; com o conhecimento, o domínio próprio; com o domínio próprio, a perseverança; com a perseverança, a piedade; com a piedade, a fraternidade; com a fraternidade, o amor. “Todas as coisas” é uma expressão que quer dizer… todas as coisas. Não quer dizer que devamos dispensar outras coisas nobres e boas, mas que aquilo que Deus nos dá em forma de mandamentos e promessas é suficiente para analisar todas as coisas. E tais coisas nos conduzem à vida e à piedade. Conduzem-nos a viver a vida para a qual fomos criados, isto é, para refletir a glória do conhecimento de Deus, segundo a vontade de Deus, isto é, gozando do processo de participar da natureza de Deus. Como? Pedro continua: para a realização de tal processo redentivo (ou seja, a aplicação da redenção consumada em Cristo), é preciso associar a fé à virtude. Noutras palavras, é preciso assegurar que fé, a crença básica da pessoa, seja a crença fornecida pela Palavra de Deus -e isto a ponto de transformar o caráter da pessoa.

O evangelicalismo moderno repete o erro antigo de permitir que a religião seja apenas mais um departamento da vida, uma associação a um grupo, uma série de regras humanas para a boa vida. Entretanto, o evangelho anuncia a transformação do caráter da pessoa, da própria identidade. Você já considerou que o termo identidade está ligado ao termo “idêntico”? Fomos criados à imagem de Deus e somente refletindo tal identidade seremos quem Deus planejou que fôssemos. Associar fé e virtude implica em crer na realidade da existência de Deus (Hb 11.3, 6) a ponto de transformar sua virtude, isto é, caráter.

Tal transformação só pode ocorrer pelo conhecimento completo daquele que nos chamou para sua própria glória e virtude, a saber, para refletir seu conhecimento praticando a fé (crenças básicas). A prática do conhecimento de Deus em comunhão com ele confere à pessoa o domínio próprio necessário para deixar as paixões que há no mundo e passar a viver piedosamente, isto é segundo os pensamentos de Deus, em comunhão e em adoração. Uma vez exercitados na fé segundo a virtude de Deus (poder) e de posse do conhecimento revelado na Palavra de Deus, viveremos a verdadeira piedade (espiritualidade) que se traduz na perseverança. Perseverança não significa apenas a continuação da caminhada, mas inclui a permanência na fé virtuosa, no aumento e aprofundamento do conhecimento de Deus e de sua vontade, na vivência da piedade verdadeira em que a vida é uma expressão de culto a Deus em cada pensamento, sentimento e ação, e no domínio próprio gerado em termos dessa submissão a Deus e sua Palavra, a qual passa a ser uma nova natureza que persevera em todo o caminho e em cada passo. E em todo o caminho e a cada passo, a pessoa de Deus sabe que não está só, e que não é bom que esteja só. Deus, que é Um, não está, contudo, só; ele é Um e Três. E para que gozássemos e refletíssemos sua unidade e diversidade, criou-nos para ter comunhão com ele mesmo e com suas outras criaturas. Vem daí que no caminho e a cada passo desenvolvemos o amor fraternal em relação aos que tem a mesma fé e virtude, que conhecem a Deus e prosseguem em conhecê-lo, que zelam conosco quanto à piedade e que conosco perseveram. Finalmente, diz Pedro, alcançamos o objetivo maior do amor a Deus e aos homens.

Desta maneira, seja por leitura da Palavra seja por pregação seja por doutrina, o evangelho que anunciamos objetiva tal transformação de caráter. Encher a igreja, ser benquisto e bem ouvido, enfim, ser pastor bem-sucedido, tudo isso é decorrência da fé e da virtude que as pessoas em nós vêem e de nós ouvem.

Para que estas coisas estejam em nós, e nós nelas, e para que saibamos interpretar a Palavra e as pessoas segundo a Palavra, como convém, há algumas coisas a serem lembradas.

(1) A motivação flui da Palavra e não da “psicologia” do pregador.

(2) A pregação para o aconselhamento é fundada nas pressuposições da Palavra de Deus e não na linguagem das psicologias. (3) A estruturação e os objetivos decorrem da Escritura e não da habilidade de diagnóstico do pregador. (4) As mensagens são as mesmas mensagens de consolação, exortação e edificação por meio de ensino, de doutrina, etc., com a diferença importante de que a aplicação tem em mente a redenção de Cristo para a transformação do caráter, segundo a necessidade do indivíduo e do corpo de Cristo. 14 Esta parte significante da aplicação envolve entendimento claro dos problemas das pessoas segundo categorias bíblicas de pensamento, em termos dos seguintes aspectos.

(1) A origem dos problemas.

(2) Os propósitos do tratamento e solução dos problemas.

(3) Como usar a Palavra de Deus para ajuda e autoconfrontação. (4) Como usar os dons da igreja para ajuda mútua em relação a problemas e encorajamento mútuo para enfrentar adversidades e alegrias.

3.2 O Uso Da Escritura Para Aconselhamento

Os cristãos mais velhos devem se lembrar das “caixinhas de promessas” que muitos lares cristãos tinham à mostra, em suas salas. Guardada a beleza da idéia, tal uso da Bíblia deixava muito a desejar. Primeiro havia apenas promessas seletas, sem as orientações e admoestações necessárias para a vida cristã; segundo, as promessas eram “tiradas” como elemento de sorte. Da mesma maneira, o uso indiscriminado da Escritura em qualquer circunstância pode apresentar distorções prejudiciais para a vida cristã, especialmente no caso do aconselhamento. Geralmente, a pessoa em necessidade de aconselhamento se encontra física, mental e espiritualmente frágil, inábil para discernir e tendente a interpretar mal a Palavra de Deus. Assim, a fim de produzir um aconselhamento bíblico eficaz, o conselheiro deverá ter uma compreensão do uso da Escritura que seja correto quanto à hermenêutica (interpretação), sadio quanto à doutrina (ensino douto) e sábio quanto à aplicação (fé mais virtude). Veja 2 Timóteo 3.14-17.

David Powlison escreveu sobre o poder da Escritura para transformar pessoas; para transformar pessoas destrutivas em construtivas, pessoas descontroladas em controladas, pessoas inflexíveis em flexíveis, pessoas sem esperança em realistas com esperança, pessoas iradas em pacificadoras. Como? Ele responde:

Na sociedade moderna, a maneira pela qual a Escritura esclarece e envolve as pessoas tem sido grandemente mal-colocada. O que teria de ser feito para recuperar a centralidade da Escritura para ajudar as pessoas a crescerem até a plenitude da imagem de Cristo? Como a relação face-a-face poderá ser reconfigurada para servir como instrumento da única sabedoria duradoura e da única humanidade verdadeira? A recuperação da centralidade da Escritura requer duas coisas: convicção suportada por conteúdo. A convicção? A Escritura é a mensagem sobre entendimento e ajuda de pessoas. O escopo da suficiência da Escritura inclui as relações face-a-face que nossa cultura chama de “aconselhamento” e de “psicoterapia”. O conteúdo? Os problemas, necessidades e tribulações de pessoas reais -até os mínimos detalhes -terão de ser racionalmente explorados pelas categorias com as quais a Bíblia nos ensina a entender a vida humana. 15 No artigo, Powlison discorre sobre o poder da Escritura para tratar do problema central dos “desejos da carne”, depois do que, conclui:

Sondamos apenas um dos muitos termos por meio dos quais a Bíblia explica as obras do coração humano em detalhes específicos. Este é um tema cujas riquezas são inexauríveis. O coração humano é um verbo ativo. Não “temos necessidades”; “desejamos” da maneira como amamos, tememos, esperamos, confiamos, etc. Neste artigo, examinamos os termos do desejo. Poderíamos ter examinado quaisquer temas e termos que capturam as atividades fundamentais do coração humano. E deveríamos fazê-lo seguros disto: o evangelho de Jesus Cristo é tão abrangente como a diversidade humana e tão profundo como a complexidade humana. 16 Tremper Longman III menciona um comentário de Calvino sobre o livro dos Salmos: “… uma anatomia de todas as partes da alma; pois não há nenhuma emoção da qual alguém possa estar consciente que não esteja ali representada como que num espelho”. Longman então diz:

3.3 A Palavra De Deus É Viva E Eficaz

Calvino, em outro lugar, aplica a metáfora do espelho não somente ao livro dos Salmos, mas à Bíblia inteira. O que ele quer dizer? Corretamente, ele crê que, quando lemos a Bíblia, algo de reflexivo ocorre tal como quando nos colocamos diante do espelho pela manhã e temos uma visão de nós mesmos. Na Bíblia, entretanto, em vez de termos uma visão de nosso corpo, temos um vislumbre daquilo que vai dentro de nós. Deixados ao nosso próprio engenho, estaremos perdidos, buscando nosso “verdadeiro eu” em lugares em que jamais poderíamos nos encontrar. Mas a Bíblia articula o que vai dentro de nós -conta-nos a história de nossa vida -e ministra às nossas necessidades, nossa culpa e nossa alienação. 18 Adiante, Longman ainda diz que a Bíblia nos faz entender a nós mesmos em meio a toda essa confusão que sentimos dentro de nós (e eu acrescento: e em meio a toda a confusão de nossas relações interpessoais); fornece estrutura para nosso pensamento (e para as nossas conversas); e nos aponta Deus. “Le-mos as Escrituras e vemos dentro de nós”. 19 Sobretudo, vemos Deus e vemos o nosso semelhante segundo a lei maior de amar a Deus primeiro e depois ao próximo como a nós mesmos.

3.4 Como, Então, Interpretar A Escritura Em Relação Ao Aconselhamento?

Michael Horton, em Um Melhor Caminho, 20 ilustra a tendência atual da pregação com a figura de Proteu, uma divindade da mitologia grega dotada do dom de profetizar o futuro. Quando os encantadores tentavam arrancar de seus lábios profecias sobre seus próprios destinos, Proteu frustrava seus intentos transformando-se em “dragão, fogo ou torrente de água, segundo o seu querer”. Somente uma coisa poderia forçar Proteu a satisfazer suas exigências: ele teria de estar preso em correntes. O que estamos fazendo hoje, entende Horton, é uma tentativa proteana de acorrentar Deus e arrancar dele a bênção retida. Veja esta longa, mas importante, citação:

Indo nessa direção, o propósito da pregação não é, primariamente, informar ou instruir (ainda que isso esteja claramente envolvido) nem exortar e conduzir o povo a fazer algo (ainda que isso não esteja ausente), e certamente não é oferecer “palpites” de ajuda com o fim de usar Deus para tornar nossas vidas menos miseráveis. Deus não se incorpora em nossa trama, mas nós na dele. Essa narrativa não está aí para nos oferecer ajuda adicional na construção de nossa própria vida, mas para julgar a própria narrativa e nós com ela, de maneira que, finalmente, abramos mão dela e nos tornemos personagens do drama da redenção. Nosso propósito na pregação é acorrentar Proteu e profetizar sua morte e ressurreição em Cristo. Nosso ponto de referência não será mais o de infindáveis escolhas, mas Jesus Cristo, em cuja imagem estamos sendo conformados. O objetivo é reescrever nossos corações, dar-lhes outro enredo que junte as histórias pessoais e do mundo, numa totalidade significante que transforme as partes. Nosso objetivo não é adaptar o enredo cristão aos enredos superficiais e destrutivos do “contexto contemporâneo”, mas conformar-nos e a nossos ouvintes ao drama real da História. Jesus Cristo e o drama da redenção (que nele começa, alcança o clímax e é consumado) compõem o mundo real, o cenário real da peça de nossa vida. E porque o ato final está firmemente assentado no propósito de Deus, não estamos apenas interpretando. Essa peça é real. Nossa identidade muda, inevitavelmente, no curso da vida; ainda assim, não há intermináveis escolhas, mudanças sem sentido. Em Adão, “mudança” significa escolhas intermináveis feitas com liberdade ao acaso. Em Cristo, “mudança” significa crescimento em Cristo à medida que somos transformados por meio da perpétua imersão na Escritura que dirige a história de nossa vida. É por meio da verdade e da habitação na verdade que somos feitos, realmente, livres. 21 J. Douma 22 ilustra a interpretação da Bíblia de quatro maneiras: como guia (quando houver instruções diretas), como guardiã (quando houver instruções indiretas), como bússola (quando houver direções gerais) e como farol (quando não houver instruções).

• 3.4.1 A Palavra de Deus usa perspectivas e temas elásticos O Senhor Jesus pregou, ensinando e aconselhando as pessoas por meio de perspectivas, temas e palavras. Marcos escreveu que Jesus expunha a palavra por parábolas conforme o entendimento das pessoas, e que as explicava aos seus discípulos (Mc 4.33-34). O próprio Senhor disse a Nicodemos que ele não poderia entender as coisas terrenas, quanto menos as celestiais (Jo 3.12). Além disso, a Bíblia não define, como os homens, coisas que são tão complexas, preferindo descrevê-las, usando perspectivas diferentes a fim de que haja compreensão das coisas em diferentes situações (Hb 1.1-2). Expressões e termos também são tratados de maneira elástica, isto é, descritiva em vez de definitiva, a fim de que não sejam limitantes, mas sim abrangentes e aplicáveis. Alguns exemplos são os diversos usos das palavras verdade, fé, obras, amor, esperança, etc. Tais termos se prestam à aplicação da Escritura à nossa vida, envolvendo os diversos aspectos do conhecimento humano: normativo, descritivo, situacional e existencial. 23 Considere uma tríade. No centro da tríade, o ponto de fuga normativo focaliza a autoridade de Deus expressa nos seus mandamentos e promessas. John Frame diz:

Tal autoridade atesta a si mesma, não havendo critério mais elevado. O homem foi feito para pensar em concordância com Deus, mas rebelou-se; ainda que procure suprimir o conhecimento da lei de Deus, o ser humano continua a conhecê-la e a usá-la para sobreviver no mundo de Deus. O redimido vem a aceitá-la e a se deliciar nela. Ela se torna a sua pressuposição fundamental, ainda que não a observe com plena consistência até a sua glorificação no dia final. 24 É significativo o fato de que os mandamentos e promessas de Deus fazem paralelo com seu caráter justo e bom, com sua verdade em amor. Assim, tal ponto de fuga normativo considera uma tríade perspectiva.

A perspectiva descritiva significa a exposição circunstanciada da Palavra escrita por meio da palavra pregada (Rm 10.17), refletindo a sabedoria de Deus (1 Co 1.21). Existem duas linguagens, dois discursos correntes no mundo. Um é o da palavra verdadeira e amorosa de Deus, e outro, o da palavra falsificada e autocentrada dos homens rebeldes contra Deus (Rm 1.18-25).

A perspectiva situacional focaliza o controle de Deus sobre a totalidade da sua obra e das circunstâncias, compreendendo, como Frame ainda diz, tanto a lei revelada na Escritura quando a revelação geral na natureza criada. Deus ordena que entendamos a criação o bastante para aplicar a Escritura a todas as áreas da vida… Cada fato coloca uma questão ética… e sugere respostas… 25 Portanto, a perspectiva situacional analisa o que sabemos do mundo à luz da Escritura e sugere o conhecimento bíblico em diferentes situações.

A perspectiva existencial focaliza o poder de Deus na lei revelada ao homem criado à imagem de Deus. Como diz Frame, nós chegamos a conhecer melhor a lei à medida que melhor conhecemos a nós mesmos. Além disso, aprendemos como a regeneração e a santificação (isto é, obediência) são essenciais para o conhecimento de seu sentido pleno e de como este interage com a lei e com a situação a fim de conduzir-nos à verdade. 26 Conforme a consideração acima, a pregação para aconselhamento terá de prestar atenção a tais perspectivas a fim de fazer uma hermenêutica correta da Palavra, uma hermenêutica correta da pessoa e uma hermenêutica correta do mundo, a fim de produzir uma aplicação adequada.

3.4.2 A Palavra De Deus É Teórica E Prática

Não há teoria sem prática nem prática sem teoria. Pense nisto: agir sem pensar é pecado, pois cede à natureza decaída; pensar sem agir também é pecado, pois falha em alcançar o padrão de Deus.

Uma das razões pelas quais muitos aconselhamentos falham é exatamente porque há conselheiros e aconselhados que não sabem como concluir a teoria em termos de sua aplicação, às vezes interpretando mal o texto bíblico, às vezes deixando de considerar perspectivas e elasticidade de termos e temas e às vezes deixando de fornecer passos facilmente identificáveis e aplicáveis.

Lembre-se do que já tratamos sobre o caráter reflexivo da pregação. Tiago diz que, quando a Palavra de Deus não é praticada, é como o que ocorre com o aconselhado que olha seu rosto no espelho e sai para logo se esquecer da própria feiúra (Tg 1.21-25). Para que a prática seja completa, será preciso que o princípio bíblico seja implementado. Uma mensagem sem implementação prática será um vidro sem prata que a faça refletir a glória de Deus e a alma do homem. “E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito” (2 Co 3.18).

Veja o seguinte exemplo. Às vezes, o conselheiro cita Efésios 4.25 (“Por isso, deixando a mentira, fale cada um a verdade com o seu próximo”), esperando que este seja o conselho bíblico para o mentiroso. No entanto, nesse caso, o aconselhamento poderá se perder numa artimanha comportamentista. De fato, não basta tirar a mentira e pôr a verdade. Paulo diz que é preciso, antes, conhecer e ser instruído na verdade de Jesus, despojando-se do velho homem, renovando o entendimento e revestindo-se de Cristo. Daí, diz o apóstolo, tire a mentira e ponha a verdade -atentando para a motivação certa, que é ser membro de Cristo e uns dos outros. A chave para a transformação é ser membro do corpo do qual Cristo é a cabeça. Somente a união verdadeira produz a noção correta da necessidade da verdade: união com Cristo e comunhão em Cristo.

Jack Hughes, pastor em Burbank, Califórnia, diz que “os pastores de hoje deixaram de considerar a diferença entre princípios, aplicação e implementação”. Aplicação, diz ele, é como os princípios bíblicos deveriam ser obedecidos. Por exemplo, escreve Hughes, “no caso de Salmo 19.7-14, uma das aplicações é: “Leia sua Bíblia”. Mas não basta o princípio nem a aplicação; falta a implementação.

O problema não é com o conceito; o problema é com a implementação do conceito. Como alguém reforma um motor de carro? Se você nada souber sobre mecânica de motores, como poderia encontrar os meios e habilidades para fazê-lo? 27 Tremper Longman III fornece alguns conselhos: Fale para a totalidade da pessoa. O termo alma é entendido hoje com diversos sentidos que não correspondem aos sentidos usados na Bíblia. O mercado não-religioso usa o termo alma para os desejos do corpo: “Refresco para a alma”. As psicologias falam da alma como sendo apenas a estrutura da psique. As filosofias usam o termo para descrever processos mentais. O uso do termo alma, na Bíblia, refere-se à totalidade da pessoa.

A Bíblia, como espelho da alma, se refere à totalidade do ser, penetrando além das realidades superficiais para chegar ao coração daquilo que pensamos, sentimos, desejamos e decidimos. Entender tal ênfase é essencial, ou abriremos a Bíblia esperando que seu propósito principal seja apenas informar nosso intelecto, dizer-nos quem Deus é e em que implica nossa relação com ele. Não entenda isso de modo errado. A Bíblia alimenta nosso intelecto, mas vai além disso. A Bíblia provoca nossas emoções, estimula nossa imaginação e apela à nossa vontade. A Bíblia fala à totalidade da pessoa, e é por isso que tem de chegar ao coração -a fim de que a experimentemos. 28 Por exemplo, diz Longman, a Bíblia fala sobre a sexualidade humana. Algumas pessoas têm uma visão distorcida da sexualidade, considerando o sexo como um mal necessário, pecaminoso e relacionado à “carne”. No entanto, a verdadeira espiritualidade, informada pela Palavra de Deus, orienta a alma para o prazer apropriado do sexo dentro da relação conjugal. 29 Fomos criados com anseios profundos, entre os quais o desejo sexual que nos ensina, entre seres humanos, o desejo por Deus. O desejo sexual serve aos propósitos de Deus quando experimentado da maneira pretendida por Deus. 30 Apreenda a imaginação. Como a palavra de Deus penetra a alma até o coração? Longman propõe despertar a imaginação com imagens da verdade em espelhos de beleza. “Considere”, diz ele, a forma pela qual Deus escolheu nos dar a sua Palavra. Você já notou que a Bíblia não é apresentada com um tratado de filosofia nem de teologia sistemática (ainda que contenha tais aspectos)? Deus, certamente poderia ter escolhido tais formas para falar de si mesmo… A Bíblia não tem a forma de uma confissão de fé… excelentes meios para resumir e expressar o que cremos… Nossa fé é baseada em fatos históricos (ver 1 Coríntios 15.14) e Deus poderia ter escolhido escrever um texto de história para nos falar da salvação, mas não o fez. Ele, compassivamente, escolheu nos falar com histórias e poemas. 31 A imaginação é a maneira como entendemos a crença em relação às realidades do nosso mundo interior e exterior. A imaginação é o nosso entendimento das crenças sobre Deus, o mundo e o homem. Como Longman também escreve, dizer que Deus nos fala na Bíblia por meio de histórias e poemas não quer dizer que os eventos bíblicos sejam mitos ou histórias inverídicas. “Não, tais histórias dizem com precisão o que realmente aconteceu. Mas fazem isso de um modo cativante e com um estilo vívido que nos deixa assentados na beirada dos nossos bancos” 32 -prontos para experimentar a Palavra.

Conecte nossa história à história de Deus. Longman propõe ainda que a leitura e exposição da Palavra deveriam fazer “soar os sinos” de nossa experiência. “Deus quer nos transformar por meio da sua Palavra. Assim, ele nos fala de maneira a capturar o nosso coração e levar-nos para junto do seu coração”. E nos deixa com algumas questões:

4.1 A Escritura: O Pregador É O Meio Entre A Hermenêutica E A Pregação

O movimento circular crescente da revelação escriturística, por meio de autores múltiplos e diversos, de representações culturais diversas, ao longo da história, se presta para atingir todas as áreas e variáveis da compreensão humana. Os usos da palavra na revelação e na proclamação não significam apenas uma opção, mas implicam a própria formação e transmissão das idéias teóricas-práticas. Deus criou o mundo por meio da Sua palavra e revelou a Si mesmo e ao mundo por meio de palavras. Para que todo o conhecimento revelado pudesse cobrir e se estender às inúmeras variações das realidades internas e externas do ser humano, ele não a revelou em forma de um “dicionário de vida”, mas “de muitas maneiras” (Hb 1.1).

4.1.1 A Escritura Fala Ao Coração Por Meio De Palavras, Conceitos E Figuras

O conhecimento bíblico não é apresentado de forma definitiva, mas descritiva, tanto para falar a todas as pessoas de todos os tempos e culturas, quanto para cobrir todas as áreas necessárias “à vida e à piedade, pelo conhecimento completo daquele que nos chamou para a sua própria glória e virtude” (2 Pe 1.2). Tal como Deus falou outrora muitas vezes e de muitas maneiras e tal como nos fala hoje pelo Filho (Hb 1.1), que nos falou por meio de parábolas para que os filhos do reino o entendessem, assim também a Palavra nos fala por meio de modelos e analogias perspectivas. 34

4.1.2 Um Exemplo Bíblico: A Primeira Epístola De Paulo Aos Coríntios

Introdução e proposição. Foi isso que Paulo fez quando escreveu aos coríntios. Ele começou a sua carta com a afirmação de sua própria vocação e a confirmação do chamado dos coríntios (1.1-3), ressaltando a centralidade do Deus triuno quanto à eleição, consumação e perseverança da salvação (1.4-8). O propósito da carta é claro: A unidade de Deus deveria estar sendo refletida na comunhão do corpo de Cristo (1.9-10).

Divisão e dispersão. A partir daí, Paulo argumenta sobre diversas questões que causam divisão no corpo de Cristo e suas soluções: (1) contendas sobre pessoas e posições (1.11-17); (2) discussões sobre poder e sabedoria (1.18-2.16); (3) obras da carne versus obras de Deus (3.1-4.21); (4) pecado e disciplina redentiva (5.1-6.20); (5) sexualidade e compromisso conjugal (7.1-40); (6) escravidão a ídolos e a liberdade do jugo de Cristo (8.1-9.27).

União e propósito. Neste ponto, então, Paulo adverte: todas essas coisas que causam divisão na comunhão do corpo de Cristo são sintomas de um problema maior: os coríntios estavam centrados em si mesmos, na própria estultícia, e conseqüentemente, em ídolos (pois ninguém é deus suficiente para si mesmo), agindo por necessidade e não por expressão, sendo conduzidos à dissolução interna (individualismo) e à desintegração externa (luta pelo poder) (10.1-33). Todas as questões morais que causavam divisões entre os coríntios não refletiam a ética de Deus. A questão principal não seria a de como se vive para “subir a Deus”, mas como Deus “veio ao homem”, em Cristo, para trazerlhe a luz de sua glória. Comer, beber, casar, enfim, viver, só tem sentido se for para a glória de Deus (11.1-34). Tudo mais, continua Paulo, é jogo de palavras (línguas) e luta por poder (dons) -que podem parecer lutas autênticas, mas desviam o crente do caminho (12.1-31).

Comunhão interior e exterior. Então, Paulo passa a descrever os princípios chaves da verdadeira vida. Jogos de palavras nada significam; jogos de poder nada significam; obras da carne nada significam. Pessoas e palavras só têm um sentido vívido quando impelidas pelo amor, e o amor só poderá ser operado por uma esperança imaginada segundo a habitação da fé. Destes três, o amor é o maior não porque seja exclusivo. O amor é uma palavra sem conteúdo se não for visto como a glória de Deus num movimento de graça para atribuir à criatura a própria natureza divina (2 Pe 1.3), que adquire abrangência quando a fé e a esperança encontram expressão na mesma glória de Deus, pela graça e mediante a fé (13.1-13).

Princípio, aplicação e implementação. Havendo fixado os princípios do conhecimento de Deus e de sua Palavra (habitação da fé) na glória revelada de Deus, segundo uma imaginação que apreende o conhecimento da história de Deus segundo a sua própria história e a história dos coríntios, Paulo aplica a mensagem ao coração, demonstrando como a palavra deve ser usada para a edificação, como o poder deve ser usado para o serviço e como a verdadeira comunhão de pessoas e palavras (segundo o senhorio e a providência de Deus) promove a glória de Deus (14.1-40).

Finalmente, o apóstolo implementa a fé, a esperança e o amor, fornecendo os passos norteadores do caminho. Ele mostra aos coríntios como importa viver agora para a eternidade (15.1-16.24).

4.1.3 O Uso Que Paulo Fez De Termos, Expressões E Metáforas

Todos os termos descritivos que a Escritura usa são também elásticos e abrangentes. Tome, por exemplo, o termo glória. Tão vazio hoje em dia, o termo glória abrange toda uma teo-visão. A glória de Deus (honra, reputação, peso, beleza, esplendor, brilho, dignidade, louvor etc.) é a expressão de seu caráter e tem um sentido em que é aquilo que temos de refletir em nosso próprio caráter.

O termo graça também carece de conteúdo. Geralmente, definido como um dom imerecido, esse termo descreve muito mais do que isso. É o caráter justo e bondoso de Deus movendo-se na direção do homem que criou para habitar com ele. Nesse sentido, a graça é a doação da glória de Deus ao homem para refleti-lo e participar, assim, de sua própria natureza e virtude (2 Pedro 1). Do meio das trevas do nosso pecado, tudo o que podemos vislumbrar de sua glória são os rasgos de luz de um dom imerecido. O mesmo ocorre com o termo fé. Ele descreve a crença, a confiança e a esperança que regulam as relações do ser humano com Deus, com o homem e com o mundo. Mas significa muito mais que isso. É a habitação do homem com Deus (ou, no âmbito da queda, com os ídolos). A fé é um movimento do homem, primeiro para cima, para o transcendental; segundo e decorrente disso, um movimento para fora, para a realidade criada; e terceiro, um movimento para dentro, de retro-alimentação. Por sua vez, o termo amor, mais conhecido pela sua conseqüência, o sentimento do amor, na verdade, como causa, é o ato responsável de fazer o bem. Como tal, é um movimento operacional, primeiro em relação a Deus e, segundo, para fora, na direção do outro.

Conclusão

Será preciso, sempre, ler a Bíblia com a mente e com o coração. A leitura da Palavra deveria ser feita sob o entendimento da dinâmica da tríade habitação-imaginação-operação. Primeiro, o leitor habita com Deus na Palavra. Lê o texto em humilde oração até que seu entendimento seja esclarecido pelo Espírito Santo, conforme a promessa, acerca das verdades ali contidas. Segundo, ele refaz tudo aquilo que imagina em seu coração sobre a realidade da vida, com base na crença, esperança e confiança nas verdades ali expostas; terceiro, o leitor conduz seu coração a planejar, segundo Deus, novos objetivos de vida segundo os caminhos de Deus (“entrega teu caminho ao Senhor”), novas e santas estratégias (“o coração… pode fazer planos, mas a resposta certa vem dos lábios do Senhor”) e cria novos desejos virtuosos e frutíferos (“ele satisfará os desejos do teu coração”). Uma fez feita essa “leitura”, é chegada a hora de “ler” a possível assistência, os ouvintes: Onde habitam? Como imaginam o que esperam? Qual o desejo do coração: espiritual, carnal, autárquico, autônomo? É preciso que o pregador leia a Palavra e as pessoas; que fale delas para Deus tanto quanto pretende falar de Deus a elas. Isso significa fazer a hermenêutica da Palavra e a hermenêutica da pessoa.

A pregação para aconselhamento se mostra efetiva quando exibe a relação entre a unidade multiperspectiva da mensagem (a Escritura como fonte e conteúdo, e o pregador como meio entre a exegese e a estrutura do sermão) e a coerência do ato-estrutura do pregador, isto é, a totalidade das afeições e afetos interiores manifestados nas emoções e comportamentos. O pregador é o meio entre a mensagem e o recipiente da mensagem, cujo objetivo é transformar o caráter dos ouvintes e produzir mudança de comportamento. A mensagem deverá ser viva para apresentar a Vida à vida.

Abstract

This article presents and defends a model of preaching that goes beyond particular perspectives such as the differentiation between the purposes of the sermon and biblical counseling, types of sermons, the duality of theology and practice, the use of secular sources to reinforce the power of Scripture, etc. It also orients towards a hermeneutical interplay of God’s Word and the individual in light of the same Word, through the use of biblical perspectives, to the end of producing an instructive, persuasive, and transforming preaching, on the basis of Christ’s finished work. The article’s distinctive element is its multiperspective view of the aspects of preaching and the concepts of counseling, as well as an integrative view of the act of preaching and counseling according to faith in God, hope in Christ, and the love shed by the Holy Spirit.

Keywords

Theo-reference; Preaching; Counseling; Interpretation; Perspectives; Integration; Character; Transformation.

SECTION

LANSBERRY, James. A view from the pew. The Journal of Modern Ministry, Vol. 2, Issue 1 (2005), p. 139-143.

GOMES, Wadislau Martins. Em terras dos Brasis. Brasília: Refúgio, 1997. 12 SIGLEY, Thomas. Evangelism implosion: reaching the hearts of non-Christian counselees. The Journal of Biblical Counseling, Vol. 1, No. 1 (Fall 1998), p. 7.

Sou grato ao Dr. Jay Edward Adams por estes insights proporcionados em classe (CCEF, 1987). Ver ADAMS, J. Lectures on counseling. Grand Rapids: Baker, 1978, p. 181.

CALVIN, Commentaries, Vol. 22 (Tiago), p. 297. 18 LONGMAN III, Tremper. Reading the Bible with heart & mind. Colorado Springs: NavPress, 1997, p. 29.

Ibid., p. 31. 20 HORTON, Michael. Um melhor caminho. São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 67-68. 21 Ibid.

Ibid.25 Ibid.26 Ibid.

HUGHES, Jack. Implementation: the missing ingredient. Journal of Modern Ministry, Vol. 1, Issue 1 (2004), p. 89-93.

LONGMAN III, Heart & soul, p. 31. 29 Ver GOMES, Wadislau Martins. Coração e sexualidade. Brasília: Refúgio, 1999. 30 LONGMAN III, Heart & soul, p. 32. 31 Ibid., p. 32-33.

Ibid. 33 Ibid., p. 34-35.

POYTHRESS, Vern S. Symphonic theology. Grand Rapids: Zondervan, 1987, p. 16.

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